Os Mundos e a Porta

Os Mundos e a Porta

terça-feira, 20 de maio de 2008

Here We Stand, We Can Do No Other


Páro para respirar fundo. Fico a pensar, de olhos fechados. Quem é este que aqui vai? Olho-me como se a minha imagem fosse de alguém já morto, como se aquele sorriso fizesse parte de um passado que ficou lá e não se repete. Como se trocasse de lugar com o meu próprio reflexo e passasse a ver-me do espelho. Como um perpétuo sorriso de adeus que não sai.

Sedento de todas as realidades, como se a vida não chegasse para viver tudo, pedindo permanentemente desculpa por ser assim e por deixar sempre tudo para trás, porque é assim.

Sinto pesada a mochila às costas, que sulca os ombros de há tanto tempo ser carregada. O peso que me prende a um mundo todo e a uma vida inteira que nunca foram meus nem foram realmente construídos por mim. Vivo emprestado e a emprestar-me.

Aquele sou eu, este que eu nunca soube bem quem é. A Desilusão em carne e osso.

domingo, 18 de maio de 2008

Where's the fuckin' toilet?!...

Quando esta questão surge berrada nos ouvidos, com o equilíbrio já comprometido e as pernas retesadas, algo estala no pensamento. Agora é aqui.

A verdade é que os indivíduos que circulam de negro carregando colunas de vidro exibindo GUINESS adoram que alguém lhes diga ao ouvido tá fudjido cara para poderem parar um minuto que seja e trocar algumas palavras na língua que os pais lhes ensinaram.

Chove muito mas tudo anda nu. E tudo come pouco e vai muito ao ginásio. O que vale é o metro que de metro não tem nome, mas de porto tem o bastante.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Sinais

Deixem lá o tempo estar descansado. Passaram três meses desde a última, mas isso não significa que o Deserto tenha sido inundado ou que tenha caído um meteorito que o tenha apagado do mapa.

O Deserto continua, e continua a ser de Gobi, apesar de a Porta ter sido aberta e de Gobi ter passado por ela. Mas é Gobi.

Este ainda não é o último post. Esse nem sei se alguma vez será mesmo escrito.

Dizer que foi a experiência da minha vida, que vi e vivi coisas que nunca julguei possíveis, de que serve isso, se nunca nenhuma palavra será capaz de o explicar? Acreditem.

Não voltei chinês, mas voltei diferente.

Por vezes somos confrontados com sinais, que podemos fingir que ignoramos, mas aos quais não podemos verdadeiramente fugir. E este dá que pensar.


quinta-feira, 6 de setembro de 2007

A China e o Futuro - Zandinga Reloaded.


O povo chinês, curvado sob o peso das suas próprias contradições, não mais é que o projecto adiado – mas possivelmente inevitável – da nova potência dominante mundial.

Desde sempre foi assim. Os impérios vêm e os impérios vão. E não há nada que indique que a História tenha chegado ao fim e não continue o seu lento processo de recapitulação.

A China em si mesma é já um império e assim é há cinco mil anos. Porém, falo de outro império, falo d’ O Império. O domínio mundial, hoje exercido pelos Estados Unidos, mas inexoravelmente condenado a um fim. Será a China a terminar essa hegemonia norte-americana, ainda neste século.

No dia em que uma das mais perfeitas e raras manifestações da intervenção divina desaparece da face da terra, o contraste chinês não poderia ser mais pungente.

Por vezes, Deus toca alguns homens e algumas mulheres, transmitindo-lhes uma ínfima parte da Sua Graça, concedendo-lhes dons muito especiais. São capacidades ou vocações ou talentos que depois, quando concretizados numa tela, num livro, numa pedra bruta ou frente a um microfone, são a mão, os olhos e a voz de Deus ali replicados. O recurso à justificação divina explica-se facilmente. O tremor que se sente, o aperto no coração que se sofre emocionado, a falha momentânea na respiração que surge quando se vê, lê ou ouve uma verdadeira obra de arte, aquela leve tontura que vem do mais profundo do nosso inconsciente e que não conseguimos evitar, essa é a razão de invocar Deus e a sua intervenção para explicar o facto de serem homens, meros mortais, a criar tal inigualável expressão de beleza e de esplendor.

Este império, que vai tomar conta do mundo daqui a trinta anos, é controlado por um punhado de dirigentes invisíveis, políticos e económicos, que partilham e dispõem do poder como querem. O propósito comunista foi metido no bolso há muito tempo, quando o sucessor de Mao Zedong, Deng Xiao Ping, introduziu o conceito de um país, dois sistemas. Hoje, o que temos na China, é uma ditadura de cariz autoritário, herdeira adulta do totalitarismo adolescente do tempo da Revolução Cultural. Uma ditadura madura, assente em alicerces inamovíveis e, sobretudo, apoiada e acarinhada por uma massa humana anónima de mil e trezentos milhões de chineses voluntariamente adormecidos, anestesiados, como macacos de repetição de rituais quotidianos estupidificantes, pobres diabos cujo escape favorito é dormirem o mais que podem e onde podem, que deliberada e aliviadamente querem e gostam que uma dúzia de indivíduos, inimaginavelmente ricos e poderosos, lhes conduzam os destinos. Já não há ideais nem grandes timoneiros. Há um pragmatismo selvagem, que chega ao ponto de o governo anunciar que do dia x ao dia y o céu de Pequim vai estar limpo e depois nesse período, ao contrário do perpétuo smog que intoxica os pulmões e enegrece as almas, o céu está mesmo limpo graças aos éditos da autoridade. Ou ao ponto de até o próximo Dalai Lama pretender escolher por decreto, acabando com a tradição centenária de ser o Dalai Lama vivo a indicar o próximo recém-nascido a encarnar o Buda.

Mas onde está afinal o contraste?

Está no facto de como estamos a falar de uma massa informe de pessoas a quem não é dado qualquer contacto com qualquer forma de cultura que não seja a própria – arqueológica e estática, ou a nova cultura McDonald’s/KFC – desprovida de conteúdo, nunca este país terá a cultura, a arte e a criação como adjectivos do seu inevitável domínio global.

Será um domínio mundial sem a injecção permanente de cultura a que estamos condenados desde o final da Segunda Guerra Mundial. O que até pode nem ser mau de todo. Mas também será o tempo em que das poucas coisas que funcionam ou saem bem feitas das fábricas, duram pouco e nunca funcionam mesmo bem.

De resto, tudo é igual. Também no Império ainda existente e em muitos outros satélites, acontece o mesmo em termos de exercício oligárquico do poder. Um punhado manda nos outros todos, não havendo uma verdadeira democracia no aspecto de haver uma possibilidade real de escolher os líderes.

Mas nas nossas sociedades ocidentais, a democracia não se manifesta apenas no desenho de um cruz. Ela surge na sua mais bela forma na arte e na cultura, coisa que os Chineses já só têm nos museus e nos livros de História. Este povo está de tal modo anulado, de tal maneira acinzentado e formatado, que as únicas formas de revolta que se vêem hoje e que escapam, por vezes ilicitamente, à obsessão regulatória do Big Brother local são as pequenas vigarices, os escarros para o chão, a condução irresponsável, a deglutição ruidosa, a mentira fácil, o desleixo com tudo e muitas outras coisas.

Irónico é pensar que afinal, da teoria marxista, a única coisa que se vai verificar é que de facto a História vai repetir-se, que há um Império que mais uma vez vai ser substituído por outro, que a dialéctica hegeliana vai suceder, mas só na forma, porque na matéria, nada será revolucionário, apesar da mesma existência de directórios políticos. Tudo fogo de artifício.

E curioso é pensar que toda esta conclusão talvez não possa estar mais errada. Porque se nos lembrarmos do Portugal de há trinta anos, sabemos bem como era a nossa sociedade em termos de honestidade, de limpeza das calçadas, da segurança nas estradas, da educação à mesa e de muitas outras coisas...

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Cem anos de vida.


Hoje, às oito horas da manhã, hora Portuguesa, faz cem anos que Lord Robert Baden-Powell, general do exército inglês, nascido a vinte e dois de Fevereiro de mil oitocentos e cinquenta e sete, dava o primeiro toque de alvorada do primeiro acampamento escutista de sempre, na pequena ilha de Brownsea, na costa sul inglesa.

Foram vinte os primeiros rapazes, entre os onze e os catorze anos de idade, organizados em quatro patrulhas: Maçarico, Touro, Corvo e Lobo. Foram eles a dar início a um Movimento Mundial de educação não formal de crianças e jovens, que hoje conta com vinte e oito milhões de elementos em todo o Mundo e que tem como objectivo primordial a formação integral – espiritual, física, social, intelectual e afectiva – daqueles que serão os homens e as mulheres de amanhã.

O crescimento do Escutismo foi lento e com alguns obstáculos. Baden-Powell queria um Movimento abrangente, que rasgasse as espessas barreiras sociais da época, impondo uma vivência entre os rapazes rigorosamente igualitária, o que, na altura era totalmente inovador. Também devido a esse objectivo, foi decidido o uso de uniforme, para esbater diferenças sociais entre os rapazes. Porém, BP era um herói da Guerra dos Boéres profundamente respeitado na conservadora sociedade inglesa da época e esse foi o ponto que determinou o sucesso do Escutismo.

Ao longo dos anos, houve batalhas difíceis que o Escutismo teve de travar. A mais complexa terá sido talvez a usurpação que alguns regimes totalitários e autoritários da primeira metade do século XX fizeram do ideal escutista, surgindo-lhe sucedâneos grotescos como a juventude hitleriana ou a mocidade portuguesa. Ainda hoje o Escutismo é vítima desse aproveitamento, junto das camadas menos informadas da população, que associam o Escutismo a ideais de extrema-direita, equívoco grave que é reforçado pelo uso do uniforme ou da cada vez mais rara ordem unida (formaturas em estilo militar), práticas que têm finalidades exclusivamente pedagógicas e com sucesso comprovado.

Há Escutismo confessional e há Escutismo não-confessional, ou seja, ligado oficialmente ou não a uma religião, mas todo o Escutismo só o é se tiver subjacente uma vivência espiritual. E essa vivência é feita em função da aceitação da existência de Deus como criador da vida e do Homem, seja ele a Santíssima Trindade cristã, o Alá muçulmano, o Dalai Lama, Confúcio ou o Buda. O Fundador do Movimento acreditava que o homem só se realiza plenamente se assumir a dimensão espiritual da sua vida também em plenitude, não recusando aquilo que o distingue radicalmente do animal. A convicção da existência de uma Entidade Superior que ama cada um dos homens que caminham à face da Terra, que se expressa e plasma nas coisas mais simples, como a cor verde de uma folha de árvore, o calor reconfortante do sol na face, o sorriso cândido de uma criança ou tantas outras coisas que nos fazem sentir coisas inexplicáveis, não é uma patetice estupidificante, um engodo colocado pelas elites para adormecer ou inebriar as massas. É uma forma de estar na vida que afasta o cinismo que mata o verde, o calor e o sorriso. Sem pôr de parte a crítica racional, a intelectualidade. É uma escolha, que BP desafia a fazer.

Em Portugal, o Escutismo surgiu em 1913 pela mão da Associação dos Escoteiros de Portugal. Dez anos depois, foi formado o Corpo Nacional de Scouts – mais tarde, Corpo Nacional de Escutas (CNE) - por iniciativa da Arquidiocese de Braga. O primeiro Chefe Nacional – chamado à altura “Comissário Nacional” - era ele próprio um clérigo. É por isso que cai por terra o argumento de algumas pessoas, bem intencionadas com certeza mas mal informadas, que rotulam o Escutismo de “elitista”, não compreendendo a condição de se ser baptizado para se poder ser Escuteiro. Essa condição só existe para se aderir à Associação Católica de Escutismo (CNE), que é um organismo que tem uma origem e uma inspiração católicas, não podendo a ela fugir, sob pena de perda da sua própria identidade.

Sou Escuteiro desde os onze anos de idade. Fui Explorador Júnior, Pioneiro, Caminheiro, Caminheiro em Insígnia de Ligação e, desde dois mil e três, Dirigente. Fui Guia da Patrulha Águia, Guia da Equipa Lobo e Chefe de Equipa Che Guevara. Sou Chefe de Clã (comunidade de Caminheiros) do meu agrupamento local – 376 Coimbrões, agrupamento que ajudei a refundar. Tenho mais de duzentas noites de campo, das quais destaco dois acampamentos de núcleo, quatro acampamentos regionais, dois acampamentos nacionais e três jamborees internacionais. Sou Medalha de Campo III Classe – Bronze e II Classe – Prata, participei em staffs de acampamentos em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente o Acampamento Nacional de 2002 e o Jamboree Belga de 2003. Fui chefe de sub-campo no Acampamento Regional do Porto de 2005 e Chefe de Contingente do CNE no Acampamento Europeu de Caminheiros em 2006, em Itália. Fui Adjunto do Chefe Nacional para a IV Secção – Caminheiros, entre 2005 e 2007, liderando o respectivo Departamento Nacional.

E apesar de tudo isto, que é a uma história já longa de muitas honras e pequenas vaidades, não há nada que se assemelhe sequer de longe ao tremor discreto, à emoção contida, à explosão muda que sinto sempre que coloco o meu lenço de Escuteiro ao pescoço e o arrumo no colarinho, sempre que aprumo a minha camisa, sempre que estico melhor a meia, que corrijo a posição da jarreteira e que percebo a influência que o Escutismo teve e tem em mim e em tantos tantos outros. Nada se compara àquilo que sinto quando converso com um Caminheiro que foi Lobito e percebo claramente o quanto o Escutismo contribuiu para a formação do bom rapaz ou da boa rapariga que está ali à minha frente. Futuros homens e futuras mulheres com defeitos e com falhas, mas também com um ideal permanente que levarão ao peito como missão, fazendo todos os possíveis por cumprirem os seus deveres para com Deus, a Igreja e a Pátria, auxiliarem o seu semelhante em todas as circunstâncias e obedecerem à Lei do Escuta, procurando sempre deixar o Mundo um pouco melhor do que aquilo que encontraram.

Hoje faz cem anos, todo o Mundo está em festa e eu aqui, num dos cinco países do Mundo em que não há Escutismo oficial. Ironias do destino.


segunda-feira, 23 de julho de 2007

Seis.


Não sei se por obrigação ou por que sim, acho que não fica mal lembrar que hoje se completam seis meses de vida em Pequim. A outra cidade, que também começa por P e fica quase quase na mesma linha horizontal. A que eu imaginava da varanda da casa de minha Mãe, sem saber que era ela que eu ia conhecer, imposta pela vontade alheia e aceite pela inevitabilidade de combater.


Seis meses de sono e de sonho, de saudade e de surpresa, de descobertas e de inquietações. Às vezes penso como é ridículo fazer planos de vida, eu, que há apenas um ano não tinha quaisquer perspectivas de melhorar a minha vida e de dar cumprimento àquilo que achava (in)conscientemente ser um direito adiado. Num minuto atendo um telefone pela milésima vez, no outro vôo para a segunda parte.


Que ninguém pense que tomei a decisão de vir porque tenho espírito aventureiro; porque tenho sede de conhecer culturas diferentes; porque quero ter histórias fantásticas para contar a filhos orgulhosos e a netos boquiabertos; porque quero que em Portugal me olhem com um misto de admiração e inveja, porque vivi e sobrevivi no estrangeiro e ainda por cima, num estrangeiro tão estrangeiro como este. Para mim, esta é uma aventura vivida fora desse tempo, tarde demais para tal. Esses são argumentos e razões de quem é mais jovem, de quem ainda tem mais interrogações que respostas. Dos que ainda talvez vivam o que eu já vivi.


Eu vim porque finalmente tive uma hipótese concreta de combate. O combate que procurava há tanto tempo, com o mundo e comigo mesmo, de conseguir, de conquistar, de rasgar obstáculos, de dar um murro na mesa, de escalar uma montanha à minha medida. Vim para acertar contas, para pôr pontos nos ii, para fazer o tempo voltar atrás e repôr a minha própria justiça histórica que imodestamente julgo ter direito de determinar.


Nunca soube viver sem combater. Na vida pessoal, na vida estudantil, no trabalho. Por condições melhores para mim e para os meus, pelos direitos de indivíduos e de grupos, pela equidade das coisas, por ideais. Para mim, a vida em si mesma traduz combate. E que bela é essa palavra dita de forma limpa e digna.


Seis meses de distância, de combate permanente, que diluem as paragens passadas e formam a necessidade de respirar sempre, de não parar de caminhar, de habituar os olhos a quererem o que está para lá da montanha. Mal acredito, mas fui mesmo eu que cheguei aqui há seis tão longos meses que se multiplicam por doze, com um frio que ainda hoje não consigo descrever, longe de tudo o que conhecia, de tudo o que gostava, e bem no meio de tudo o que desconhecia e que não parecia poder vir a algum dia gostar. Mas não parei de respirar, apesar de me faltar o ar; não parei de caminhar, apesar de me faltarem as pernas; não baixei os olhos, apesar de não os querer abrir. Resolvi combater e com o apoio quotidiano e o incitamento genuíno de alguns outros combatentes, de lá e de cá, esse primeiro assalto venci. Faltam todos os outros do resto da minha vida. Sinto-me muito satisfeito por essa vitória.


Por outro lado, o regresso está cada vez mais próximo e também me sinto feliz por isso. Por tudo aquilo que já disse sobre este país e sobre as saudades que sinto da minha terra.


Apesar de, na verdade, cada vez saber menos quem é que vai regressar a quê.


segunda-feira, 16 de julho de 2007

A Primeira Baixa.


Como é característico da natureza humana, a valorização das pessoas ou das coisas que nos são importantes só é feita na justa medida perante a sua falta ou ausência.

No sábado deu-se a partida de um banpo. Banpo adoptado, mas banpo, tão banpo como qualquer outro. Menos um aqui mas o primeiro em Portugal, carregado de histórias fantásticas e de uma experiência muito muito rara.

Este banpo dava um contributo especial à comunidade. Aquele que, de cima da sua invulgar capacidade de satirizar tudo e todos, do seu sarcasmo refinado e da sua presença sempre agradável e diferenciada, marcava um ritmo de boa disposição e de conversa animada. Mesmo que o céu estivesse nublado e chovesse merda do céu.

Para a Banpo Village, comunidade com hora de óbito marcada desde sempre, é o primeiro sinal concreto e visível da inevitável desagregação.

A ti, panda-patrão, um abraço de até breve e obrigado.


segunda-feira, 9 de julho de 2007

Dez Mil Quinhentos e Sessenta e Quatro


São quantos dias vivi até hoje no dia em que cumpro vinte e nove anos de idade que não é carne nem é peixe, é fazer quase trinta que é o que toda a gente vai pensar durante este ano que se segue quando responder a quem pergunta a minha idade. Ninguém tem vinte e nove. Tem quase trinta.

Neste que é o primeiro aniversário passado longe das caras que sempre fizeram parte dele.
Lembro-me de lanchinhos preparados pela minha Mãe, os meus amiguinhos da escola a comer freneticamente rissóis e fatias de bolo enquanto faziam mira aos transeuntes com os caroços de azeitona que devoravam mais para atirar caroços do que propriamente para comer a azeitona.

Lembro-me de saídas à noite, dos copos, lembro-me de por vezes ter de forçar uma boa-disposição que não existia, porque no nosso dia de anos temos de estar sempre felizes, não sei bem porquê, mas é assim, senão todos ficam desiludidos ou então preocupados porque algo de muito grave se passa.

Lembro-me do Sol, sempre presente no meu aniversário, do calor bom da nossa terra, da vontade que dá ir para a praia e estar lá a espreguiçar a sorte de fazer anos entre gelados, banhos de mar, sereias e sestas... ou então de estar na montanha com aquele ar puro e as cores tão vivas de verde e azul, entre caruma, água fria da rocha e sons da terra que só se ouvem lá...

Lembro-me sempre dos que já cá não estão. Não é por sofrer de qualquer desvio necrófilo. Mas lembro-me sobretudo daqueles que cumpririam a minha idade se uma triste piada do destino não os tivesse roubado de nós tão prematuramente. E sinto-me meio feliz meio envergonhado sem saber bem como e a achar que já posso dar-me por satisfeito por ter feito mais um e ter chegado até aqui.

Estou profundamente agradecido por todas as graças que Deus me deu durante estes anos e quando penso bem no quanto Ele me deu, sinto-me pequeno e desmerecedor de tantas e tantas coisas boas que me fizeram rir e chorar, sonhar e acordar, cair e levantar. Sinto cada dia como se fosse o primeiro e tudo o que quero é viver cada vez mais, experimentar e conhecer. Mas já sou plenamente feliz com aquilo que tive e que tenho, nestes dez mil e tal dias que vivi, que já são tantos, que nem dá para imaginar.

Nem pareço eu a falar, mas é mesmo assim que penso.

Um dia feliz para todos vós que fazem a minha vida feliz!

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Buda Nostradamus.

E agora... para algo completamente diferente...

Nem tudo é cinzento. Até na China há tachos à espera de ex-primeiro ministros Portugueses, não é só em Bruxelas ou em Genebra. Nem que seja como assessor do Quinto Dalai-Lama. Veja-se bem o sujeito à esquerda. JMB, ele mesmo, previsto há centenas de anos ao lado de Sua Santidade.

Ou então é ao contrário. O fenómeno da reencarnação existe mesmo e o nosso herói simplesmente tem queda para os corredores do poder.


Esta merecia.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Mesmo em Frente.


Enquanto lá fora a temperatura continua alta, acompanhada da chuva que finalmente cai forte, aguardo a hora do jantar (a chuva cai forte, mas também é quente). Aguardo a hora de jantar porque pela segunda vez em sete dias vou ao Holiday Inn, onde decorre desde há duas semanas uma feira de gastronomia portuguesa (por vezes penso se os chineses terão ideia de que o que é normal é que com sol não chova e que com frio ela caia a potes, mas desconfio que eles acham perfeitamente normal ficarem encharcados ao ponto de não saberem se estão molhados da chuva ou da transpiração). Quando lá fomos no sábado, comemos que nos fartámos, ainda por cima os vinhos – portugueses, Bacalhôa e Moscatel – foram de graça, porque como vieram directos de Portugal, não levaram rótulo em chino, o que impede a sua comercialização (sempre que chove, apanhar um táxi torna-se uma aventura, porque de súbito, as notas aparecem nos bolsos dos chineses – sovinas por defeito genético - e todos já podem andar de táxi, o que só se traduz em molha reforçada e corridas com empurrões para ver quem chega primeiro ao táxi livre que parou ali adiante, porque aqui não há filas nem respeito pelo próximo). O que deu direito a uma digníssima nacional bebedeira, daquelas que valem a pena porque sabem a verde e vermelho, apesar dos vinhos terem sido todos maduros – e talvez sobretudo porque acomodada num bacalhau com natas, num arroz de polvo, numa carne de porco à alentejana, nuns chocos à algarvia, num lombo de porco assado e noutras coisas esquecidas da boca e do gosto que o meu estômago complacente alojou nessa benfazeja noite de consoada antecipada.
Curioso, ainda hoje contei esta história: quando era muito novo, gostava de me debruçar na varanda pequena da sala. A varanda é virada a Leste e na altura, como Gaia ainda era apenas o outro lado da Ponte D. Luís, havia poucos prédios. Via-se Gondomar. Na frente da casa virada a Norte, até as chaminés da Petrogal de Leça se viam. Então, eu debruçava-me. E ficava a pensar: “para lá daqueles montes, fica a Espanha, a Itália e muitos outros países distantes. Ficam aqui mesmo em frente, só tem é de se andar muito”. Hoje, estou do lado de lá dos montes e debruço-me para o lado oposto, na janela do meu quarto, ironicamente virada a Oeste. E ainda é mais curioso constatar que o paralelo que cruza o Porto é praticamente o mesmo que cruza Pequim, com uma distância de quarenta quilómetros a Norte. Estou aqui mesmo em frente, só um pouco antes de Aveiro. Só tenho é de andar muito.

Sim, hoje vou jantar Portugal novamente. Sentado à mesa com os meus companheiros de epopeia, que choram e perscrutam o horizonte do sol-posto em silêncio e em segredo como eu por tornarem a ver aquilo que nos fez. Hoje vou entrever esse sol-posto, entre uma garfada e outro gole, numa gargalhada ébria de querer esquecer a varanda da casa da minha Mãe.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Oitenta Sintomas da Doença.

É uma estreia neste blog. Uma citação. Mas é merecida. Retrata fielmente aquilo que, a acontecer a um expatriado na China, significa que é altura de voltar para casa. Não quis traduzir, para manter o valor da originalidade. Ao autor, algum expat como eu, o meu reconhecimento fraternal pelo rigor na descrição da realidade.

You Know You've Lived in China Too Long When...


1. You’re at an expensive western restaurant and don’t even notice the guy at the next table yelling into his cell phone
2. You enjoy karaoke
3. You walk backwards in the park listening to a transistor radio
4. The China Daily is your source for hard hitting, fast breaking, investigative journalism
5. You smoke in crowded elevators.
6. All white people look the same to you
7. You like the smell of the bus.
8. You find state-employed retail staff helpful, knowledgeable and friendly
9. You no longer need tissues to blow your nose
10. You find western toilets uncomfortable
11. You throw your used toilet paper in the basket (as a courtesy to the next person)
12. You think that the heavy air actually contains valuable nutrients that you need to stay healthy
13. You think a 30 year old woman who carries a Hello Kitty lunch box is cute
14. A sexual pervert is a man who prefers women to money.
15. It’s OK to throw rubbish, including old fridges, from your 18th-floor window
16. You believe that pressing the lift button 63 times will make it move faster
17. You aren’t aware that one is supposed to pay for software
18. You are not surprised to see your tap water run dark brown
19. You tell your parents their house back in your home country has bad feng shui
20. You think that a $7 shirt is a rip-off
21. You always leave tray and trash on the table when you are in Starbucks because you insisted it is the way to keep everyone employed
22. You buy an XXXL T-shirt in store when you returned home
23. You take large sum of cash whenever you go hospital in home country
24. You have no reservations about spitting sun flower seeds on the restaurant floor
25. You think it’s silly to buy a new bike when it’ll get stolen soon and stolen bikes are half the price.
26. You’d rather pay the 10 yuan for an all night stay at the internet cafe than the 30 for a taxi home.
27. You feel cheated if you don’t receive a full head and shoulder massage when getting a haircut
28. You blow your nose or spit on the restaurant floor (of course after making a loud hocking noise)
29. You no longer wait in line, but go immediately to the head of the queue
30. It becomes exciting to see if you can get on the lift before anyone can get off
31. It is no longer surprising that the only decision made at a meeting is the time and venue for the next meeting
32. You no longer wonder how someone who earns US$ 400.00 per month can drive a Mercedes
33. You accept the fact that you have to queue to get a number for the next queue
34. You believe everything you read in the local newspaper
35. You have developed an uncontrollable urge to follow people carrying small flags
36. You regard it as part of the adventure when the waiter correctly repeats your order and the cook makes something completely different.
37. You are not surprised when three men with a ladder show up to change a light bulb
38. You look over people’s shoulder to see what they are reading
39. You honk your horn at people because they are in your way as you drive down the sidewalk
40. When car accidents become a source of heartwarming humour
41. When shopping at Carrefour some laowai stares you down for catching you looking into his basket while you wonder to yourself what laowai’s eat
42. You have figured out that it is actually the Taiwanese who are running this country
43. You have a pinky fingernail an inch long
44. You burp in any situation and don’t care
45. You start to watch CCTV9 and feel warm and comforted by the governments great work
46. You think Pizza Hut is high-class and worth queueing for
47. You have learnt how to detect someone is in a hurry behind you, and now have the ability to not only walk very slowly but also grow eyes in the back of your head, so when they start to overtake on the right hand side, you automatically cut in and walk very slowly directly in front of them
48. When you are able to jump the queue because the idiot laowai left 2 centimeters between themself and the person in front of them
49. You have absolutely no sense of traffic rules
50. You start calling other foreigners Lao Wai
51. You start cutting off large vehicles on your bicycle
52. The last time you visited your mother, you gave her your business card
53. You think no car is complete without a tissue box on the rear shelf and a feather duster in the trunk
54. You go to the local shop in pajamas
55. When looking out the window, you think “Wow, so many trees!” instead of “Wow, so much concrete!”
56. Pollution, what pollution?
57. You think “white pills, blue pills, and pink powder” is an adequate answer to the question “What are you giving me, doctor?”
58. Someone doesn’t stare at you and you wonder why
59. Firecrackers don’t wake you up
60. Your family stops asking when you’ll be coming back
61. You wear out your vehicle’s horn before its brakes
62. You buy a top-of-the-line karaoke machine
63. Forks feel funny
64. Chinese remakes of Western songs sound better than the originals
65. You get homesick for Chinese food when away from China
66. You realize that smiling and nodding is Chinese body language for, “Go away; leave me alone.”
67. All the top-level government officials you befriended for guanxi purposes when you first arrived are retired and living in your country
68. After being in an accident, you tell the ambulance driver which hospital to take you to
69. Your company offers you a job in your native land, and includes regular “Home Leave” to China as an incentive
70. You think of “salad” as diced apples in mayonnaise
71. You don’t bother to take the sticker off the lenses of your fake Ray-Bans
72. You only wear a suit when you dig ditches or do home repairs
73. Your handshake is weakening by the day
74. You compiled a 3-page list of weird English first names that Chinese people of your acquaintance have chosen for themselves.
75. Your collection of business cards has outgrown your flat
76. You and a friend get on a bus, sit at opposite ends of the bus, and continue your conversation by yelling from one end to the other
77. You cannot say a number without making the appropriate hand sign
78. You like the taste of Green Tea and Chivas
79. You start recognising the chinese songs on the radio and sing along to them with the taxi driver
80. You feel insulted when you enter a restaurant and only three waiters welcome you

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Gravidade Zero


Existe um método de treino para permitir aos astronautas terem contacto com a sensação de ausência de gravidade bastante curioso. Na Rússia, já é utilizado até como atracção turística. O esquema é muito simples. As pessoas metem-se num avião de carga, o avião ascende a grande velocidade num ângulo de quarenta e cinco graus e subitamente estabiliza, voando na horizontal. A conjugação da velocidade com o ângulo dá o extraordinário resultado de se obter um estado de gravidade zero durante vários segundos. Depois, de repente, os passageiros, que estavam inebriados de adrenalina, caem desamparados no chão, iniciando uma descida também de quarenta e cinco graus. O processo repete-se algumas vezes. Mas a última sensação é sempre a da descida.


Acabei por não ir à Mongólia. Perdi o comboio. Por cinco minutos, mas perdi. O que pode não ter sido mau de todo, pois voltarei a tentar a dita incursão em Julho, altura em que, pelos vistos, a paisagem é mais bonita. Dizem que até há um festival. Talvez mais um embuste à chinês.


Faz muito calor por aqui. A maior parte do dia estão mais de trinta graus. Não se vê o sol, por vezes mal o prédio do outro lado da avenida. A sensação de estufa é sufocante.


As minhas aulas de mandarim vão andando em bom ritmo. A escola é engraçada, a professora também. Às vezes irrito-me com ela, na minha mais pura tradição de mata-profs. Vamos quase todos os banpo, aulas às segundas e às quartas, duas horas. Não posso dizer que falo chinês. Mas safo-me no que é mais básico, o que por si só já é um feito. Sempre em frente, vira à esquerda, vira à direita, pára aqui, inverte a marcha, mais depressa, mais devagar, quanto é, qualquer número até cem, arroz branco, arroz frito, (quero por favor) uma garrafa de cerveja fresca, água, chá, chá verde, um copo, como te chamas?, eu chamo-me, eu sou advogado, eu sou português, pegado a Espanha, Figo, Cristiano Ronaldo, eu sei, eu não sei, não te entendo, estás bem?, hoje é segunda, terça, quarta, quinta... feira, hoje são dezoito de junho de dois mil e sete, são x horas, (não) estou cansado, (não) estou ocupado, tenho x anos de idade e a minha mãe y. Enfim, estas e algumas outras trivialidades que não servem para mais nada senão confortar-nos um pouco do ponto de vista intelectual. E também para por vezes falarmos realmente chinês com chineses, o que em si mesmo é um espectáculo do mais improvável que há.


Comprei umas sandálias Tommy Hilfiger num dos mercados de falsificações. Oito euros. Bonitas. Duraram três semanas. Levei-as ao sapateiro. Renasceram. Por mais uma semana. Como o conserto custa cinquenta cêntimos, fiz contas e decidi ir ao sapateiro mais umas catorze vezes. Quando chegar aos oito euros, deito estas fora e compro umas novas. Ou não, porque daqui a três meses e meio é Outubro e já estamos perto dos zero graus.


Um dos banpos fez anos na sexta-feira. Festa no Doze. Registada. Na máquina e nas memórias.


Descobrimos que esta cidade tem piscina. Fomos averiguar. No meio de Pequim, dentro de um parque. Grande, redonda, com ondas e escorregas, com uma tira de areia a fazer lembrar o Areínho de Avintes em tempo de cheias. As senhoras com biquinis vastos. Gelados e salsichas chinesas. Crianças a chorar e jovens adolescentes exibindo o peito num entediante jogo de vólei de praia. Tão suja ou limpa como uma piscina pública portuguesa. O que não é grande prenúncio. Mas terei de lá ir. Para fechar os olhos e imaginar que estou em casa. Na casa daí.


Faço cinco meses de China daqui a cinco dias. Ou seja, já passou metade. E assim não parece, apesar de ao mesmo tempo ter a clara sensação de estar aqui há anos. Tenho essa sensação e sinto-a perfeitamente integrada no meu subconsciente. Já sei de antemão que vou estranhar imenso o regresso a Portugal, tenho a absoluta certeza disso, mesmo que venha a ser um regresso transitório. E não por saber que por lá tudo continua na mesma modorra lamacenta do costume. Receio ficar na penumbra, entre dois mundos tão diferentes, com um pé aqui e um aí, com a porta entreaberta, mas fazendo pressão para se fechar, para um lado qualquer. Os Mundos e a Porta. Como é que eu havia de me ter lembrado de uma metáfora tão ajustada, ainda não tinha aqui chegado? Tudo demasiado previsível, talvez. A partir daqui, é sempre a descer.


quarta-feira, 6 de junho de 2007

Tempestade do Deserto


Após algumas semanas de escuridão, Gobi volta a ver a luz do dia. Há que ver que um deserto é um deserto é um deserto. Sim, três vezes, para que não restem dúvidas.


A verdade é que Gobi é o relato de uma travessia. Por vezes, as travessias podem tornar-se mais difíceis ou mais aborrecidas. Dizer dez vezes que o barco navega em frente para atravessar o rio é um tanto ou quanto inútil. E quando a água começa a ser sempre a mesma, mais ainda. E se é assim para a água, que será para a areia de um deserto...


Mas por respeito às três pessoas que me inquiriram acerca do estado de saúde do meu Deserto de Gobi, aqui vai um hino à síntese das emoções e uma tentativa de reorientar este camelo que já vai cheio de sede e sem perspectivas de encontrar oásis algum.


A verdade é que a China cansa. Os chineses são diferentes. Aquilo que ao início é pitoresco e novidade torna-se exasperante, com o passar do tempo e a repetição das situações.


Não consigo habituar-me a que tentem sempre passar-me à frente nas filas, muitas vezes empurrando-me e pisando-me sem contemplações; a que me ignorem quando circulo de bicicleta, virando os seus carros para cima de mim, como se eu não estivesse lá; a que demorem demasiado a trazer a comida, isto quando não se esquecem ou não se enganam no pedido, reagindo depois como se não tivessem qualquer responsabilidade; a que não entendam e não façam qualquer esforço para entender coisas demasiada e universalmente simples, mesmo para uma criança de cinco anos de qualquer nacionalidade, quando falo ou gesticulo com eles; a que tenham nojo de assoar o nariz a um lenço, mas achem normal assoarem-se no meio da rua directamente para o chão, premindo a narina oposta àquela que estão a assoar; a que defequem em buracos colocados nas casas de banho mais grotescas, imundas e irrespiráveis que já vi e cheirei, frequentemente de porta aberta – isto quando há porta, indiferentes a quem passa; a que achem normal circular em contra-mão, seja na rua mais estreita ou na auto-estrada mais moderna, desde que seja na berma ou no corredor das bicicletas; a que recorram aos expedientes mais patéticos para entrarem mais tarde no trabalho, saírem mais cedo e no meio tempo fazerem o mínimo possível, entregando-se a uma espécie de letargia que os conduz muitas vezes a dormirem em pleno local de trabalho, placidamente, como se fosse a coisa mais legítima e normal do mundo; a que, nas cinco ou seis vezes por ano que chove, cada gota de água que cai do céu seja castanha, sujando e manchando roupas e peles com deus-sabe-lá-o-que-vai-neste-lixo-de-ar; a que gritem uns com os outros quando estão a conversar normalmente, em vez de falar num tom normal e muitas vezes berrando em cima de quem não está a participar na dita conversa; a que o céu esteja quase permanentemente escuro e empestado de um nevoeiro denso (versão dos chineses) que não é mais que uma sopa venenosa com o fumo dos três milhões de carros que circulam diariamente na cidade, das dezenas de centrais de carvão que ainda queimam vinte e quatro horas por dia, com a poeira das centenas de obras de construção que estão a realizar-se ao mesmo tempo, entre linhas novas de metro, super arranha-céus à NY style, estádios para os Jogos Olímpicos... E tantas outras coisas mais que até caem no esquecimento, de tão repetidas e inconscientemente tornadas “normais” para nós.


Os chineses são diferentes. Não são melhores nem piores que os outros. Eles - enquanto pessoas, enquanto seres humanos. Mas são diferentes. E eu diferente deles. Contudo, no que diz respeito à cultura, aos hábitos e aos costumes, tenho o direito de afirmar que a minha cultura e os meus hábitos são melhores que os desta gente. Já não tenho o direito de querer ou muito menos de impor que eles adquiram os meus hábitos e os meus costumes. Mas posso e devo dizer que os meus são melhores. E tenho o direito de dizer e de sentir tudo isto. Porque se cair na chique tentação intelectual de dizer que não há hábitos nem costumes nem culturas melhores que outras, estou a denegar a minha própria cultura, a anulá-la, a rebaixá-la ao triste nível dos desta gente. E os intelectuais chiques entenderão isto facilmente, pois certamente defendem, por exemplo, que o costume e a tradição da tourada são pusilâmines, retrógrados, incivilizados, próprios de iletrados e de analfabetos. E eu, que não sou intelectual chique, também sou contra a tourada, mas só porque não gosto que tratem mal os bichos.


A China é gira. É gira, percebem? Percebem o meu tom de tia? É gira para viajar: por isso vou à estepe da Mongólia e ao início do Deserto de Gobi já este fim de semana e já fui a outros locais tão distantes e belos deste país-continente. É gira para passar férias: por isso recomendo a todos os meus amigos para cá virem, até porque têm onde dormir de graça – em Pequim, claro está. É gira para ganhar dinheiro: por isso cá fico e cá ficarei ainda mais tempo que o previsto se houver oportunidade para tal.

Mas não é gira em si mesma, no quotidiano real, que cansa e que mói e que só nos faz suspirar pelo sol de fim de tarde na Ponte D. Luís, pelo cheiro de maresia quando ainda se está a um quilómetro da Praia de Salgueiros, pela brisa fresca da manhã da Ribeira a tomar o pequeno-almoço na Esplanada do Cais, pela cor vermelha do céu do mar quando atravessamos a voar a Ponte da Arrábida... mas que no fundo podiam ser a Ponte 25 de Abril, as Docas, o Chiado, o Bairro Alto ou outro tesouro qualquer que na China só existe nas nossas memórias. É o nosso país, a nossa terra, que é grande e bela, mais bela que outra qualquer e que devia ser mais acarinhada e mimada por quem lá está, desde o pedinte mais anónimo ao primeiro ministro mais falso. Valorizem o país que têm. É só um e é lindo demais.


Vou esforçar-me por continuar a postar com frequência. Pelo menos, Mongólia e Gobi cá virão ter.


quarta-feira, 16 de maio de 2007

O Panda ou o Cabo do Medo

Quando alguém vê, fala ou lê algo sobre o panda, a associação a uma ideia de ingenuidade, de candura e de "coisinha fofa" é normalmente imediata. Pode dizer-se até que se trata de uma daquelas verdades axiomáticas, indiscutíveis. Panda é puro, panda é doce, panda é fofo, se eu tivesse filhos, podia deixá-los com um panda que ficaria descansado(a). Quase como o Pai Natal, antes de deixar de o ser.

A desconstrução das verdades mais belas trazidas da infância faz parte do processo normal de crescimento intelectual e emocional. O chamado choque com a vida real. Albarran diria "o horror". O horror de saber que afinal o Pai Natal não existe, que a Branca de Neve era promíscua, que o Carlos Cruz não gosta só de botas ou que o José Sócrates não é engenheiro.

O panda não é um Pequeno Pónei. O panda é um depravado, cuja fama de desinteressado é só isso mesmo - fama. Na verdade, estamos a falar de um perigoso predador sexual, que a coberto da noite e dos recantos sombrios, ataca despudoradamente qualquer ser incauto que por ali tenha o azar de passar. Azar ou sorte. Pois há quem diga que é sorte.

Assimilar o espírito panda é também uma expressão do esforço de todos os que percorreram os tortuosos caminhos de Sichuan. Onde as verdades podem tornar-se mentiras, as certezas dúvidas e as questões respostas. Panda. Acordem para a realidade. Todos temos um panda dentro de nós, à espera de uma oportunidade.

Depois desta semana, posso afirmar: Wo shi xiong mao.

Episódios da Viagem.

Chegámos a Chengdu. Uma cidade média, com cerca de quatro milhões de habitantes, capital da província de Sichuan, no centro sul da China. O vôo tinha sido calmo, excepto a descolagem que foi um pouco acidentada. A companhia era a Air China, por isso, tudo tranquilo. Após alguns minutos de espera, lá fomos num minibus para a pousada. Ficaríamos uma noite no Holly Hostel, local simpático mas que tinha mais ar de pensão manhosa do que propriamente de pousada de juventude. Bom bom era o pequeno almoço lá servido. Tão bom que havíamos de lá voltar no último dia, só para tomar a primeira refeição do dia.

Nesse primeiro dia fomos ao Centro de Criação de Pandas Gigantes. Vimos alguns, uns mais à solta, outros menos. Certo é que esse dia seria o primeiro de muitos em que o ailuropoda melanoleuca haveria de dominar as conversas e as piadas. Mas talvez fale do panda num post específico, tal a pertinência e a importância do tema.

No dia seguinte acordámos cedo. Íamos ver o Grande Buda Sentado, uma escultura com cerca de setenta e sete metros de altura, escavada numa falésia, há umas largas centenas de anos, situada em Leshan. Foi interessante e foi também a primeira caminhada/escalada, actividades que marcariam o resto da semana. Trata-se de uma daquelas visitas que à partida não puxa muito, porque a ideia de fazer mais de cem quilómetros para ver um gordo de pedra sentado é tão apelativa como levantar às seis da manhã para ir para a bicha das Finanças para pagar o IRS. Mas a verdade é que a visão do cavalheiro em questão, que é magro, é realmente um assombro, sobretudo tendo em conta que foi feito sem recurso a telemóveis nem GPS.

Após esta visita, apanhámos o minibus para uma localidade a cerca de cento e sessenta quilómetros de Chengdu, denominada Emei. Emei não é mais que uma aldeia satélite de uma montanha com pouco mais de três mil metros de altitude, com o mesmo nome, que basicamente alberga um dos mais importantes complexos religiosos do budismo na China. Bonito foi matar saudades das caminhadas e subir uns milhares de degraus montanha acima, por entre uma floresta muito bela e densa. A certa altura arrependi-me, mas tinha uma reputação a salvaguardar e lá segui, em direcção aos meus restantes companheiros, que, prudentemente, preferiram o abichanado teleférico para realizar a dita ascensão.

Deste dia, fica o espanto de ver um autêntico mar de nuvens sob os nossos pés, um manto que toca os picos da grande montanha, por sua vez dominados por templos que mais parecem faróis de navios que ali não podem existir. Uma imagem saída de uma fábula.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Viagens neste País de Maravilhas


Viajar na China é especial.

Já viajei de avião, de comboio, de autocarro e de carrinha. Já dormi em estrados de madeira e em camas de comboio, já comi coisas que nem sabia que se comiam e em sítios onde não imaginava ser possível servirem comida, já me habituei às sanitas térreas e à correspondente estranha posição que é necessário assumir e já andei em contramão na autoestrada. Já vi montanhas nevadas e lagos de muitas cores, templos que dominam mares de nuvens do cimo de montes, já vi gente muito muito pobre que sorri mais que eu.

E de cada vez que saio, sinto que fica mais ainda por descobrir neste país-continente, onde tantas etnias, línguas e nacionalidades se cruzam numa harmonia estranha, mas eficiente. A paixão vai crescendo devagar, mas não pára de o fazer.

Tenho pena de não ter ido à Queima pela primeira vez, desde mil novecentos e noventa e sete. Claro que agora já não é como antes. Ir à Queima em jeito de reformado saudosista normalmente só serve para nos apercebermos que realmente tudo passou e que estamos a caminho da velhice. Mas a Queima é a Queima. Impossível não ir. Sorte de quem pode.

Ou azar de quem não pode estar aqui.

quarta-feira, 9 de maio de 2007

Viagem ao País das Maravilhas

Vamos então falar um pouco daquilo que foi uma semana de descobertas fantásticas bem no interior da China.

A viagem começou no sábado, vinte e oito de Abril. Apanhámos o avião de Pequim para Chengdu, capital da província de Sichuan, a mil e seiscentos quilómetros, também conhecida pela cozinha ultra-picante. Com base na capital, fomos conhecer um pouco da já chamada China real.
O programa foi animado. Subimos montanhas, sempre acima dos três mil, conhecemos pessoas, bem diferentes das de Pequim, dormimos em pousadas da juventude, umas boas outras enfim, mas sobrevivemos. E bem. Com o coração e a memória cheios de recordações incríveis das paisagens que vimos, dos cheiros que sentimos, dos sons que escutámos, das gentes lindas que descobrimos e de mais um episódio de reforço dos laços, já de si tão fortes, desta desterrada comunidade lusa. Tudo isto não vale a pena dizer, se não for sublinhado o contributo insubstituível que as nossas visitas deram para o sucesso do passeio.
Mas como há imagens que valem mil palavras, aqui vai então o correspondente a cerca de trezentas e trinta mil palavras... Todas da minha responsabilidade. Depois digam que eu só tenho jeito para escrever.
Procurem a pasta "Sichuan 2007". http://fotos.sapo.pt/nunomendes

terça-feira, 8 de maio de 2007

Gobi In

Voltei.

Semana fantástica. Fotos disponíveis em link a anunciar brevemente.

Espero que estejam todos bem.

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Gobi Out.

Gobi vai desaparecer durante uma semana.

As montanhas que anunciam os Himalaias vão conhecer a sua antítese. Sichuan não será a mesma.

Banpo On The Road, agora também com alguns saltimbancos temporários.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Hotel Pequim.

Nas últimas semanas tem ocorrido um fenómeno que em nós tem causado um sentimento de profunda satisfação e ao mesmo tempo de doce nostalgia.

Com a estreia em Fevereiro, através do nosso colega Pedro, Contacteante da edição do ano passado e que vive em Shanghai, desaguando no momento presente, em que só nos nossos três apartamentos está alojada cerca de uma dúzia de familiares e amigos vindos expressamente de Portugal, a nossa casa pequinense tem sido um autêntico porto de abrigo.

Além daqueles, entre Fevereiro e este belo e soalheiro final de Abril, também estiveram connosco colegas de Shanghai e de Macau – todos do Programa.

A sensação que causa é a de sermos como uma casa segura, onde toda a gente quer ir, que toda a gente quer visitar, onde todos se sentem bem. É realmente reconfortante darmos o que temos para que as nossas visitas se sintam acolhidas e confortáveis, nesta autêntica república de reformados dos tempos universitários.

Os nossos familiares, os nossos amigos e os colegas vêm e vão, nós dizemos olá e dizemos adeus, fazemos companhia e rimo-nos com eles, sempre com aquela sensação de estarmos cá há muito tempo e para sempre, de os recebermos no nosso castelo e de os vermos partir, cheios de contentamento e de saudade antecipada.

Feliz foi também a descoberta de mais residentes lusos nesta cidade. Gente jovem com quem nos entendemos lindamente, com quem discutimos política e futebol, chinesices e portuguesices, sempre num ambiente entusiasmado de querer viver tudo e agora, de partilhar e de rir. De rir sinceramente, de percebermos que faz sentido estar aqui, que estamos bem e que nada de errado poderá acontecer.

Venham mais, que há sempre sofá para mais um.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

O Reencontro.


Sexta-feira, vinte e sete de Abril, noventa e quatro dias depois.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Parto da Borboleta.


A borboleta antes de o ser era alguma coisa. Resolve um dia dizer que não quer assim e recolhe-se, para voltar mais forte e esplendorosamente bonita.


O recolhimento da dor não pode perpetuar-se. Mesmo que não se esqueça. Eu estou aqui, não estou em mais lado algum e não esquecerei. Porém sei que alguém que está comigo e com todos quer que eu e eles continuemos, mais fortes e mais bonitos. Tal como o seu coração.


Do choque brutal e da revolta incrédula, somos todos vítimas e culpados, uma vez pelo menos. Um abraço a ti, o abraço a ti, aquele que não pude dar e me consome na angústia do perdido.

Hoje é dia do sol tornar vivo a nascer e das borboletas saírem lindas a voar.

quarta-feira, 18 de abril de 2007


Hoje, tenho algo sobre o que escrever.

Mas não vou escrever, porque nem sempre as palavras, sempre tão perfeitas, conseguem cumprir o seu papel. As palavras por vezes tropeçam nelas próprias.

Restam-me o silêncio e a estupefacção.

terça-feira, 17 de abril de 2007

Boletim Meteorológico.

Está a chegar a Primavera.

Chegar a Pequim em Janeiro pode ser um forte incentivo a não se gostar da cidade, tal é o frio, o smog e a falta de cor. Mas miraculosamente, desde há uma semana para cá, percebe-se que o Inverno já era. O sol brilha frequentemente, sendo até mesmo possível vê-lo pendurado num céu azul ilustrado de nuvens brancas. Já se veste apenas uma camisa e um casaco leve. Ainda no fim de semana tive uma estreia: andei na rua de manga curta! O próprio cinzento, que dominava toda a paisagem, começa a dar lugar a alguns pontos de verde e muitas árvores já floriram. Aliás, ontem e hoje estão a ser dias marcados por uma autêntica neve de esporos, que esvoaçam por todo o lado, cobrindo tudo e todos. Cheguei a recear que os meus problemas relacionados com alergias dessem de si. Mas até agora, nada, mesmo sendo uma torrente de algodõezinhos brancos, tantos que parece mesmo um verdadeiro nevão. Nem sinal das crises que me aprisionavam em casa e não me deixavam fazer absolutamente nada, às vezes nem ver e mal respirar. O sol e o calor trazem outro ânimo, fazem lembrar um outro sol e um outro calor que julgava terem ficado apenas nas minhas recordações.

Ao mesmo tempo, dizem que a época das tempestades de areia vindas de mim se aproxima a passos largos. Tempestades que cobrem a cidade de um amarelo de ouro e que, elas sim, não deixam ver nem respirar. Vou gostar de experimentar, saber como é aqui, uma boa tempestade de areia, sobretudo durante as minhas corridas diárias de bicicleta, munido que estarei de um bom par de óculos de montanha.
Depois das más disposições gobianas, vem o calor, que descrevem como tórrido e húmido. Cá estaremos também para o comprovar... ou não.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Ainda Pingyao - extra time.

Inexplicavelmente, talvez ainda emocionado com a Missa de Páscoa ou desorientado com as insolúveis más noites de sono, esqueci-me de referir aquele que foi um dos momentos altos da visita a Pingyao.

Pingyao tem uma comunidade cristã, católica ao que parecia. Limitada por um muro alto, tratava-se de uma pequena igreja rodeada de pequenas e poucas habitações, quase como um enclave. A igreja era simples e pobre. Estive talvez um minuto lá dentro, absolutamente só, junto do altar, de pé, a respirá-la e a lembrar. Foi o meu encontro, que tanto queria sem me aperceber e tão inesperado como é próprio, finalmente.

Sinto muito a falta de certas coisas. E o conforto que senti naquele momento é uma delas.

Parabéns, Joaninha!

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Ainda Pingyao – Cap. III: A Viagem para Cá.

Quando no Domingo acordámos, sabíamos que era dia de regresso. Mas “regresso” não deixa de ser de algum modo uma referência vaga ou como dizemos no Direito, um conceito indeterminado...

O Jinjinglou presta praticamente todos os serviços associados a uma excursão à cidade de Pingyao. Aliás, essa é prática comum a praticamente todos os Youth Hostels daqui. Assim, e pela módica quantia de sessenta kuays cada um, lá nos encaixámos os onze na tal carrinha que um dia gostaria de ser Hiace de nove lugares, mas que na verdade até era de seis, se virmos bem os bancos disponíveis. Fizemos cem quilómetros de Pingyao a Tai Yuan, por estradas nacionais chinesas. Indescritível. Por dia, na China, morrem cerca de duzentas pessoas nas estradas. Diz-se assim, ah isso não é nada, eles são mil e trezentos milhões. Quero lá saber das proporções e das percentagens! O que sei é que entre crateras lunares por todo o lado, ultrapassagens pela direita, andar em contramão na autoestrada, fazer uns três quilómetros por duas vezes por caminhos de cabras – para lá e para cá – só para não pagar dois euros de portagem, entrar e sair de vias rápidas por esses mesmos caminhos, inverter a marcha nessas mesmas vias pisando TRÊS traços contínuos e outras façanhas dignas de um Mr. Bean versão filme de terror, não sabemos bem como conseguimos almoçar, visitar dois locais alegadamente pitorescos e chegar ao aeroporto.

Mas chegámos. E sentar no avião foi um alívio, pois só faltava uma hora para chegar a casa e o facto de ser a desconhecida Hainan Airlines a transportar-nos pouco perturbava. Não após a épica jornada da tarde, que ficaria para sempre gravada nas nossas memórias e durante uns dias nos nossos ossos.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Ainda Pingyao – Cap. II: A Cidade.

De descrições históricas e panfletos turísticos sobre esta pequena cidade do interior da China, já está este pasquim satisfeito – ver A China Onde Vivem Os Chineses.

Assim, resta contar aquela que é a realidade que não vem nas publicidades mais ou menos enganosas.

Pingyao é uma localidade essencialmente feia. Flagelada durante anos e anos por minas e centrais de carvão, dentro e fora da cidade, na boa tradição comunista de perseguir o “progresso” a qualquer custo, o resultado é uma cidade de uma só cor – cinzento. Telhados, paredes, ruas, atmosfera, pessoas, tudo, tudo envolto ou coberto numa fina camada de pó negro, reforçada pela poeira causada pelas inúmeras obras que vão decorrendo nas vias e nos edifícios. Essa é a imagem que predomina e a memória que fica em primeiro lugar. Nunca mais me queixarei do belo e saudável smog de Pequim.

Depois há o resto. E o resto é a China que todos os que não a conhecem pensam que ela é. Dentro das muralhas da cidade, onde ficámos instalados, concretamente no acolhedor Jinjinglou Youth Hostel, característico pelos quartos das camas de três lugares (!), as ruas são estreitas e compridas, ladeadas por incontáveis lojas e lojinhas, que vendem tudo e mais alguma coisa: artesanato, comida, passeios, dormidas, almoços, jantares, roupa, acessórios e muitas outras coisas. Há vendedores de rua por toda a parte, os que fazem petiscos ao vivo e a cores e os que apenas tentam vender brochuras turísticas. As ruas são perpendiculares e todas pedonais. Por isso, há sempre a expectativa de dobrar mais aquela esquina, aliada a uma ténue sensação de labirinto. O ambiente é de boa disposição, ao ponto de até termos parado na rua para jogar um jogo típico com mais seis ou sete chineses e chinesas. Aqui é mesmo assim. Em Pequim vê-se muito jogar badmington, sobretudo à noite e no meio do passeio, por pessoas que, em Portugal, normalmente estariam em casa a queixar-se do frio ou de outra coisa qualquer ou então já a dormir.

Quando saímos das muralhas para visitar um templo taoísta a seis quilómetros dali, apercebemo-nos que na estrada, a China de Pequim não é diferente da China de Pingyao. Mas sobre isto falarei mais tarde.

Visitámos também um outro templo, da denominação tibetana do budismo, este ainda dentro de muralhas. É preciso esclarecer que “templo” não significa um edifício, mas um complexo deles, cada um dedicado a deuses diferentes e com história e contexto próprios. Assim, num cenário de introspecção e recolhimento, fomos presenteados com a companhia de alguns monges, que candidamente nos pediram para lhes ensinarmos a dizerem pussy, dick e tits, mas não sem educadamente retribuir, louvando alguns destes atributos de alguns dos banpos ali presentes, mormente os últimos. O que fica sempre bem a qualquer clérigo, sobretudo se tiver uma aparência perfeitamente inofensiva e se for baixinho, gorducho e sorridente. O absurdo e o inesperado fazem parte desta terra. Não por se interessarem pela matéria em causa, que isso é universal, mas por o demonstrarem publicamente e com a maior das naturalidades.

Mais tarde, viríamos a conhecer um local de convívio bem à moda que conhecemos: um pub, mais ou menos inspirado nos pubs britânicos. O "Sakura". De registar a amabilidade do dono do dito, aquando do lanche que lá comemos, ao convidar-nos para a festa que haveria de decorrer à noite, esquecendo-se porém de acrescentar que os convivas de tal evento seríamos apenas nós e a dúzia de estarrecidos mirones que, do lado de fora e com os narizes colados à janela nos observavam despudoradamente enquanto dançávamos (uns com os outros, pois não estava lá mais ninguém). Boa música apesar da mesa de som estourada a meio da paródia, boa bebida apesar de nem todos a terem mantido no estômago e boa noite de descanso apesar da estranha história dos quase threesomes forçados.

No dia seguinte, pouco mais fizemos para além da viagem de regresso. Tínhamos cem quilómetros de estrada pela frente até ao aeroporto mais próximo, enfiados numa carrinha de nove lugares apesar de sermos onze, e ainda dois locais ditos especiais para visitar no caminho.

Ainda Pingyao - Cap. I: A Viagem para Lá.

Apesar de alguns Gobi Fans serem especialmente iletrados e não gostarem de posts cheios dessas coisas estranhas a que alguém chamou palavras, exercendo pressões inaceitáveis para que este folhetim se torne numa Hola! chinoca, aqui estou para descrever a todos os outros a nossa viagem de há cerca de semana e meia a essa nada bela localidade de Pingyao.

Desde logo, uma nota para a Beijing West Railway Station que, não sendo a principal de Pequim, é brutalmente grande. A única coisa que me ocorreu dizer, quando fui comprar os bilhetes cinco ou seis dias antes foi “é maior que muitos aeroportos onde já estive”. Com security checks e tudo. Terminais, mangas de acesso, enfim...
Fica a foto do arco de entrada.

Viajar em comboios chineses é muito interessante, sobretudo se tivermos de dormir neles. Não fomos a tempo de comprar bilhetes soft sleeper, que são a versão mais confortável dos beliches que preenchem parte destes comboios de longo curso. A diferença para os outros, hard sleeper, onde fizemos a viagem, é que cada compartimento tem quatro camas, não seis e ainda tem porta para fechar e isolar do corredor, o que os hard sleeper não têm. Além disso, o colchãozinho dos soft é um pouco mais fofo que o dos hard.

A verdade é que, ao dar umas voltinhas pelo comboio (estilo FD, a percorrer as carruagens só para ver quem está e dizer uns olás), rapidamente nos apercebemos que hard sleeper é bem melhor, não só pelo preço mas também porque é muito mais arejado e com um aspecto mais limpo. O ambiente nestas carruagens é comunitário e muito familiar. Quem tem um beliche de baixo oferece-o para que outros possam sentar-se; o cheiro a comida aquecida domina; as pessoas acotovelam-se para passar no estreito corredor; há roncos, pés de fora das camas, traques, gente a passear de pijama e passadeiras de alcatifa muito gasta.

O tempo foi passando, por entre histórias de acampamentos e outras minhas desventuras, piadas fáceis do João, snacks rápidos da Mother Boli, cigarrinhos com o Commander Gonças e cervejinhas frescas ajuizadamente adquiridas pela Suzie Wong. Até que o cansaço nos venceu e lá fomos confrontar-nos com o teste final. As camas não eram desconfortáveis, eram muito limpas e com direito a um edredon, uma almofada e uma toalha. Recomendo a quem quiser passear por cá. A doze euros por seiscentos quilómetros, acho que vale a pena.

Doze horas depois, era dia e estávamos em Pingyao.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Páscoa em Gobi.

Domingo fui à Missa. Em Pequim existe uma pequena comunidade católica, fiel a Roma, que convive de forma desconfortável com um governo que ainda não tem relações diplomáticas com a Santa Sé e que proíbe qualquer culto cristão que não seja o da Igreja Cristã oficial do Estado Chinês.

Assim, ir à Missa tradicional torna-se uma aventura. Não que seja celebrada nas catacumbas, com receio dos legionários, nem que o símbolo maior seja um peixe, para evitar a perigosa e denunciadora cruz. Mas é no mínimo uma experiência nova, ir à Missa neste país.

O governo sabe que sábado às dezassete e domingo às dez e às onze há missa no vigésimo primeiro piso do Kerry Center. Contudo, para mostrar quem manda, qual ingénuo pai severo que obriga o rebento adolescente a estar em casa às x horas da noite só porque sim, as autoridades chinesas impõem algumas pitorescas exigências à comunidade católica, mormente aos seus líderes, que só podiam decorrer da demagogia inerente a um regime autoritário: a missa não é missa, é “festa”. Assim deve ser anunciado o encontro dominical, seja em panfletos, seja à porta da própria cerimónia. E à entrada o crente tem de apresentar o seu passaporte, para fazer prova da sua condição de estrangeiro. Pois chinês algum pode professar a Fé noutra igreja que não seja a de Mao.

Como se tratava da “Easter Party” – sim sim, tal e qual, mesmo isso, a afluência de fiéis era previsivelmente maior que o habitual. E assim foi. Salão de baile do China World Hotel, talvez umas quinhentas pessoas. Cadeiras soltas em auditório, altar coberto por uma bela toalha branca, com o Missal Romano e um círio, uma pequeníssima tapeçaria com uma representação vaga de crucifixo pendurada na parede, um pequeno Sacrário de madeira lá atrás e um ambão móvel para a leitura da Palavra.
Presidida por um sacerdote americano, o Father Thomas, um homem de sessenta anos, muito bem disposto e que induz uma dinâmica muito forte e colorida nas celebrações, a Missa foi bonita. Muito simples, com um coro bem ensaiado, mas marcada por um traço muito forte de comunhão fraternal entre os participantes. As pessoas sorriam de forma franca e aberta umas para as outras, nos momentos litúrgicos adequados e não só. Os olhares eram felizes. Porque ali, só estava quem realmente queria. Ali só se deslocou o indivíduo que está longe de casa e sente saudade do cheiro fresco das manhãs de domingo e do sol ofuscante que só há aos domingos e nos beija as faces quando caminhamos para a igreja. Sem obrigações sociais, sem conveniências circunstanciais. Na Missa de Páscoa de Pequim só estava quem sentia o chamamento que vem de dentro, um chamamento caloroso, acolhedor, luminoso, pleno e gratuito, de dádiva plena e de entrega recíproca.

Era Páscoa, com Cristo vitorioso sobre a morte e presente ali, não só vivo como Senhor da própria Vida, dentro de cada um de nós, enchendo-nos os corações de força e confiança para continuar a caminhar e para continuar a lutar, por nós e por todos os outros.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Pingyao, China - Banpo On Tour 2007.


Se carregarem nas imagens, vê-se melhor... Pros meninos da BD.